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Bullying e Ciberbullying

e a realidade Portuguesa:

Uma reflexão sobre

o sistema Educacional

Português

 

 

Nos últimos anos têm-se multiplicado os estudos científicos que focam as experiências de Bullying e Ciberbullying, o que representa sem dúvida uma forte contribuição para a melhor compreensão do fenómeno e consequente desenvolvimento de programas de prevenção e intervenção cada vez mais eficazes.

Sabe-se que as experiências de Bullying não são um fenómeno recente, nem apresentam mudanças significativas da forma como há já décadas atrás, as crianças se agrediam no recreio, ostracizavam e lançavam rumores maldosos umas sobre as outras.

Mas a atenção científica dada a estas experiências permitiu ter uma noção mais concreta da sua severidade, que Juvonen e Gross (2008) colocam nos 70% de indivíduos que afirmam ter tido experiências de bullying em algum momento da sua escolaridade. Este valor é, se não surpreendente, pelo menos desanimador, e indicativo do grande trabalho que há ainda a realizar.

Com o desenvolvimento das TIC surgiu ainda o Ciberbullying, que pode ser compreendido como as experiências de bullying que ocorrem com recurso a métodos de comunicação electrónica como o email, telemóvel, Messenger ou pela Internet.

E deste modo, os jovens que antes tinham somente o ambiente escolar como contexto de agressão ou vitimização, encontraram através destes meios de comunicação electrónica uma possibilidade de continuação da agressão/vitimização; ou mesmo o único meio em que a agressão parece possível. Neste ultimo caso interessa remeter a uma das características fundamentais do bullying, definida por Olweus (1993) que ressaltou a importância da existência de um desequilíbrio de poder entre os intervenientes (agressor e vitima), o que justifica o facto de indivíduos que, não sendo superiores fisicamente, recorrem a meios de comunicação electrónica para realizar a agressão, quer em resposta às experiências de bullying que vivencia no contexto escolar; quer como meio único de agressão, visto que se têm verificado que a Internet permite desenvolver uma personalidade mais agressiva (Ybarra and Mitchell, 2004), possivelmente devido ao carácter de anonimato que apresenta, ou “online disinhibition effect”. Os estudos de prevalência parecem contudo contrariar a sugestão de que este efeito permitiria um aumento significativo do cyberbullying face ao bullying (Suler, 2004), tais como o estudo de Li (2007a) no qual se verificou mais experiências de bullying tradicional (31.1% afirmaram ser agressores, 53.7% vitimas) do que de cyberbullying (14.5 % agressores, 24.9% vitimas).

O que são exactamente os comportamentos compreendidos como cyberbullying?

O flaming refere-se ao envio de mensagens negativas sobre a pessoa; o online harassment consiste no envio repetido de mensagens negativas sobre a pessoa; o cyberstalking consiste no assédio online que inclui ameaças ou intimidação; a denigration consiste em enviar comentários negativos e não verdadeiros sobre alguém ou em colocá-los online; a masquerade consiste em fazer-se passar por alguém e enviar ou colocar online algo para agredir o outro; o outing consiste em divulgar informações sensíveis sobre alguém, ou mesmo imagens; e por fim a exclusion consiste na exclusão de alguém de um grupo online (Li, 2007b).  

A concomitância do bullying e ciberbullying é significativa, ocorrendo frequentemente situações nas quais vítimas de bullying se tornam vítimas de cyberbullying, acontecendo o mesmo em sentido inverso. De facto, a relação entre o cyberbullying e o bullying tem sido verificada em vários estudos como o de Ybarra e Mitchell (2004) que indicam que 56% dos bullies/vítimas, 49% dos bullies e 44% das vítimas em Ciberbullying estão também envolvidos em bullying tradicional.

Contudo, apesar de apresentarem vários pontos em comum, o bullying e o cyberbullying são também distintos em diversos aspectos, tendo permitido que diferentes resultados tenham sido encontrados na investigação realizada, pelo que é importante analisar ambos os fenómenos separadamente, visto que se revestem de precedentes, características e consequências distintas.

Para que fosse possível este avanço científico na compreensão do bullying e cyberbullying, foram necessárias diversas vítimas que, particularmente através dos Media, chamaram a atenção da sociedade, como é o caso dos atiradores cujas acções foram associadas com experiências de bullying (Colombine como exemplo emblemático e mais recentemente o caso do colégio do Rio de Janeiro, Brasil); e suicídios também associados a experiências de bullying ou Ciberbullying.

Estes eventos dramáticos e que obtiveram a atenção da media, permitiram finalmente que se entendesse que ser vitimizado na escola não pode e não deve ser considerado um ritual de passagem, ou algo com que os jovens devem simplesmente aprender a lidar. Assim como as vítimas de violação não têm o poder de se defenderem dos seus violadores, nem têm a culpa de que estes as escolham como vitimas, também as vítimas de bullying não têm nem responsabilidade pela sua própria vitimização nem o dever de aprenderem a lidar com a vitimização.

Esta simples visão das experiências de bullying, ainda que seja com alguma unanimidade entendida como a forma socialmente correcta de encarar estas situações, na prática é ainda muitas vezes alvo de intervenções fracas ou mesmo inexistentes; e de negligência pela sociedade, particularmente em culturas conservadoras, na qual em grande medida se inclui a cultura portuguesa, na qual ainda um longo caminho há a percorrer, mas na qual a prevenção, adaptada ou não, eficaz ou não, já vai sendo uma realidade, ao contrário do que ocorria há uma década atrás.

 

 

A realidade Portuguesa

O HBSC (Health Behaviour in School-aged children) é um estudo realizado em diversos países que investiga de 4 em 4 anos comportamentos de saúde em meio escolar, tendo Portugal integrado o estudo pela primeira vez em 1998.

Em 1998, verificou-se 25.7% de envolvimento regular (duas ou mais vezes por mês, nos últimos dois meses) em situações de bullying (6.3% como bullies; 13.6% como vitimas e 5.8% como bully/vitimas) (Matos and Projecto Aventura Social, 2001; Matos, Simões, Gaspar E Projecto Aventura Social, 2009); tendo em 2002 o valor diminuído para 23.2% de envolvidos (4.7% como bullies, 12.8% como vitimas e 5.7% como bully/vitimas) (Matos and Projecto Aventura Social, 2003; Matos, Simões, Gaspar E Projecto Aventura Social, 2009); valor que voltou a descer nos dados de 2006 (Matos, Simões, Tomé, Gaspar, Camacho, Diniz e colaboradores, 2006; Matos, Simões, Gaspar E Projecto Aventura Social, 2009) , no qual 20.6% da amostra afirma envolvimento regular em situações de bullying, (6.3% como bullies, 9.4% como vítimas e 4.9% como bullie/vítimas). A mesma tendência se encontra no estudo de 2010 (Matos and Projecto Aventura Social, 2010), no qual os valores de indivíduos que nunca foram vitimizados aumentaram relativamente a 2002 (de 63,4% até 68,2%); assim como os indivíduos que indicam nunca ter agredido os colegas (68.2%). Analisando estes valores verifica-se uma tendência central para a diminuição exponencial do envolvimento em situações de bullying de forma regular.

O estudo de 1998 revelou ainda que 5.5% dos inquiridos admitem ter-se envolvido de forma intensa (mais do que duas vezes por semana, nos últimos dois meses) em situações de bullying (1.6% como bullies e 3.9% como vitimas). Em 2002 o envolvimento intenso apresentou um aumento significativo, com 11.7%, 4% como bullies e 7.7% como vitimas. No entanto os dados de 2006 mostram novamente um decréscimo, com apenas 7.6% de envolvidos de forma intensa em bullying, 3% como bullies e 4.6% como vitimas.

Conclui-se assim que o envolvimento de forma regular em experiências de bullying tem vindo a decrescer sistematicamente; e que o envolvimento severo, tendo sofrido um forte incremento em 2002, voltou a decrescer em 2006 (Matos, Simões, Gaspar and Projecto Aventura Social, 2009).

Em todos os estudos se verificou a tendência para prevalência de experiências de bullying no sexo masculino, e para a diminuição destas com a idade. A diminuição da vitimização com a idade já tinha sido verificada por Olweus (e.g. 1993; 1994a; 1994b), tendo alguns estudos verificado que a diminuição da prevalência de experiências de bullying como agressor diminui muito menos significativamente com a idade (Whitney and Smith, 1993), existindo alguns estudos que verificaram não ter sequer ocorrido uma diminuição (Sourander et al, 2000), sendo mesmo sugerido a existência de uma continuidade intra-geracional (Farrington, 1993).

De ressaltar no estudo HBSC de 2010 (Matos and Projecto Aventura Social, 2010) os resultados relativos aos alunos que indicam ter assistido a situações de bullying na escola, que consistem 59.4% da amostra, tendo 61.9% optado por não ter qualquer tipo de atitude e afastar-se, 54.8% optado por observar, e 10.7% incitado o(s) agressor(es).

Importa então reflectir sobre as atitudes dos espectadores, que podem ser diversas e as quais teremos de tomar em consideração na realização de estudos empíricos que foquem as características dos espectadores e o seu papel nas experiências de bullying. Assim, o espectador não envolvido será aquele que sabe que está a ocorrer uma situação de bullying mas não tem qualquer envolvimento, nem positivo (por exemplo informar uma autoridade) nem negativo (incitar ou observar o bullying); enquanto o espectador envolvido será aquele que se envolve de forma positiva (agindo de modo a ajudar a vitima e terminar a situação) ou negativa (incitando, ou observando). Só tomando em consideração estes tipos diferentes de caminhos podemos compreender as consequências que presenciar uma situação de bullying poderá ter.

Importa ainda salientar os dados relativos ao Ciberbullying, obtidos no estudo HBSC de 2010 (Matos and Projecto Aventura Social, 2010), no qual se verificou apenas 15.9% de envolvidos em experiências de Ciberbullying (7.6% como vitimas, 2.9% como agressores e 5.4% como duplamente envolvidos).

Estes dados permitem supor que a preocupação dos investigadores e profissionais relativamente ao tema, tem tido algum impacto na população portuguesa, e fomentam algum optimismo relativamente à realidade portuguesa.

No entanto, importa ressaltar um aspecto característico do sistema educacional português que afecta não apenas a intervenção mas também a precoce detecção de situações de risco e patologias emergentes nas crianças e jovens que frequentam as escolas de Portugal: a realidade dos docentes.

De facto, é no meio escolar que podemos encontrar os comportamentos de agressividade mais significativos, e é neste meio que frequentemente se evidenciam as perturbações mentais emergentes e no qual poderiam ser detectadas o mais precocemente possível. A sintomatologia das perturbações de comportamento, por exemplo, compreende comportamentos que a maioria dos docentes poderia considerar como alertas, e tomar atitudes congruentes em favor de uma intervenção precoce que claramente potenciaria a eficácia do tratamento. Contudo, a realidade das escolas portuguesas não é sempre esta, e são frequentemente mal sucedidos estes processos de detecção. Este insucesso pode ocorrer porque os docentes não têm conhecimentos suficientes sobre comportamentos fora da norma, e não são apoiados de perto na maioria dos casos por psicólogos e outros profissionais inclusos no sistema educacional que os possam orientar eficazmente, ou não fosse comum que um profissional de saúde mental actue em diversas escolas simultaneamente, não prestando um serviço verdadeiramente efectivo em nenhuma.

Pode ainda ocorrer insucesso neste âmbito devido à frustração que os docentes portugueses sentem perante as condições de trabalho que lhes são impostas. É incontornável referir a influência que a necessidade de se deslocarem através do País, por vezes todos os anos, para preencher as colocações que são possíveis, poderá ter nestes profissionais. Será sensato presumir que esta realidade profissional, que afecta de forma tão intensa a vida pessoal dos docentes, e o seu bem-estar psicológico; diminui a disponibilidade emocional destes profissionais, muitas vezes impedindo o estabelecimento de uma relação empática com os alunos. Esta relação, que potencia à criança ou adolescente a possibilidade de revelar os seus conflitos e problemas, pode ser fundamental na determinação de um percurso mais ou menos patológico do aluno.

 O que dizer do aluno que escreve incessantemente poemas expressivos da sua angústia e que, quando finalmente tem coragem de os mostrar a um professor, sente que ele o compreende realmente?

Um docente cujo bem-estar psicológico está severamente afectado pelas condições de trabalho, que se encontra longe da família, num ambiente de instabilidade e incerteza profissional, dificilmente terá a capacidade de estabelecer esta relação empática tão necessária para os alunos.

Importa ressalvar no entanto que esta reflexão não abrange qualquer apologia de que a educação da criança ou adolescente depende inteiramente do meio escolar. De facto, a participação e influência da vida familiar é basilar quer na compreensão das experiências de bullying, quer na intervenção e prevenção nestas, e seria desejável na realidade uma acção multidisciplinar concertada para uma ainda mais significativa diminuição nas experiências de bullying e ciberbullying. 

 

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