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Reclusa

 

 

 

Não nasci para ser reclusa, mas hoje aqui estou, encerrada numa cela escura onde entrei pelo meu próprio pé.

Nasci nos campos floridos da minha terra, debaixo de uma árvore onde a minha mãe se sentou a descansar numa tarde de calor. E ali fiquei, por entre as flores, a gritar a plenos pulmões a minha chegada ao mundo.

Não nasci para ser reclusa, enterrada no silêncio ensurdecedor destas paredes de pedra fria e impenetrável, mas aqui estou, já tão habituada ao silêncio que, quando um pássaro canta mais alto pela fresta da pequena ranhura da minha cela a que chamam janela, acordo do mais profundo sono.

Cresci numa terra alegre onde a música se ouvia nos campos, canções ritmadas pensadas para fazer esquecer o cansaço das colheitas, e aprendi a murmurar melodias a todo o instante, como a minha mãe fazia. A minha mãe era feliz, disso não deixava ninguém duvidar. Sorria todo o dia e cantarolava mesmo quando estava na pocilga a tratar dos animais. Acordava todos os dias num instante, como se não pudesse esperar para começar o dia, e no seu andar podia adivinhar-se uma dança prestes a despertar.

Não nasci para ser reclusa, à mercê dos outros, constantemente a ter de imitar o que outros fazem, e nunca poder ser “Eu”, eu que sempre disse tudo o que pensava, e corria para o topo do monte onde só os pastores mais destemidos levavam os rebanhos de ovelhas, só porque de lá, podia ver o mundo todo aos meus pés. Não, não teria pensado por um instante que um dia só conseguisse vislumbrar um recorte do topo do monte, porque a estreita ranhura da minha cela a que chamam janela, a mais não me deixa.  E daqui nunca saio, desta cela feia e escura, deste lugar de almas sofridas.

Morri a poucos passos da árvore onde a minha mãe se tinha sentado, tantos anos antes, para descansar da ceifa, quando sentiu as dores e afastou os joelhos para me deixar passar. Morri no meu campo florido, numa tarde de Primavera em que o mar de cores das flores bravias que cresciam em todos os cantos rivalizavam com o brilho dourado dos campos de trigo, e o verde da relva viçosa cobria o meu monte de vida. Morri ali, instantes depois de rir alto, com alegria profunda. Morri ali, rodeada pelos animais que me acompanharam toda a vida, fiéis companheiros. Morri ali, cercada por quase todos aqueles que tinham marcado o meu caminho, menos um, o que me matou.

Não nasci para ser reclusa, para definhar por falta de Sol e ar, mas aqui estou, e sinto os pulmões cansados da asfixia dos anos que virão. Sinto a pele encarquilhar devagarinho, porque ela também precisa da vida do Sol, e eu estou enterrada no escuro eterno.

Não nasci para ser reclusa, para ver ano a ano a passar sem saber quantos se passaram senão contando as marcas dos dias na parede da prisão onde me encerrei pelo meu próprio pé.

Nasci para receber cada novo ano a tiritar de frio mas a saborear as rajadas de vento gelado da Natureza com um sorriso. Nasci para cheirar a Primavera no desabrochar das flores que se escondem todo o Inverno com receio dos vendavais. Nasci para sentir a languidez do calor no pico do Verão, e esconder-me na sombra a conjurar uma brisa. Nasci para a melancolia própria do Outono, quase um espinho de saudade espetado no coração, quando as árvores começam a ficar douradas, e o vento leva-lhes folha a folha.

Não nasci para ser reclusa, e saber que, no dia em que tudo findar, estarei aqui, neste mesmo lugar, nesta mesma escuridão, com um xaile sobre os ombros para combater o ar gélido e a humidade que me deixam a pele gretada e o cabelo frágil, como se também dele a vida tivesse escorrido.

Nasci para partir já velhinha, com um sorriso nos lábios tão contagiante quanto o da minha mãe, depois de ter amado muito, ter visto nascer de mim vida, uma vez e outra. Nasci para embalar os meus filhos nos braços com o olhar de uma mulher completa, e temer nada. Nasci para partir com a mente recheada de memórias, como pequenas fotografias a preto e branco de cada um dos momentos que marcam o caminho.

Não nasci para ser reclusa, e saber que o dia em que tudo findar, não terei memórias alegres porque as memórias tristes as apagaram. Não terei memórias de crianças para amar, nem de me sentir completa, nem por um momento. Não terei memórias de amor, porque as memórias da saudade são as que me preenchem.

Sim, não nasci para ser reclusa, mas no dia em que partir aqui estarei, encerrada numa cela escura.

 

 

 

 

Nota: Conto vencedor do 2º Lugar nos Jogos Florais Bonjoanenses de 2014

 

 

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