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A JUSTIÇA

 

 

 

 

Antes de nos demorarmos na análise da justiça nas suas várias perspectivas, incidindo sobre a retributiva, considera-se relevante abordar o conceito de justiça em si.
Podemos desde logo perspectivar a justiça a dois níveis: o individual, que se centra nos processos cognitivos, comparações sócias e reacções individuais; e a justiça colectiva (Markovsk, 1991, cit. por Assmar, 2000).

 

Piaget (cit. por Menin, 1998) defende que a noção de justiça surge em estágios sucessivos, paralelamente ao desenvolvimento intelectual e influenciado pelas relações. Esta noção de estádios é continuada no trabalho de Kohlberg que abordou essencialmente a moral e que definiu três níveis de julgamento moral: o pré convencional, o convencional e o pós-convencional, tendo-os ainda subdividido em estágios: no pré-convencional, há a orientação ao castigo ou obediência; no convencional predomina a noção de justiça como agir de acordo com o que é desejado pelas figuras de autoridade próxima; enquanto no último nível a orientação é legalista-contratual na medida em que se rege pela consciência, ou seja, pelo que se pode universalizar como princípio.
Surgem no final dos anos oitenta uma vaga de trabalhos para estudo das representações sócias no campo da moralidade, e na concepção da justiça (Menin, 1998), nomeadamente o estudo de Percheron, Chiche e Muxel-Douaine (1987), que levou a que os autores rejeitassem os níveis pré-definidos por Piaget e Kolbherg e afirmassem que essas concepções dependem do sistema de valores, sendo construídos tendo por base as funções cognitivas, valorativas e afectivas baseadas na influência da cultura em que estão inseridos, da sua própria vivência e das circunstâncias sociais actuais. Este, entre outros trabalhos, manifesta resultados interessantes relativamente às concepções de justiça, levando a que, apesar de haver teorias mais valorizadas, não haja um total consenso nessa questão.

 

A Justiça Retributiva

 

Quando é cometido um crime a justiça retributiva, vigente nos sistemas judiciais das sociedades actuais, postula que a punição é um aspecto a tomar em consideração, ou seja, não só se procura compensar a vítima, ou levar à restauração da equidade, como se apura a responsabilidade do transgressor e se decide uma punição. Socialmente esta punição é importante, por um lado para permitir manter a noção do controlo do comportamento, mas também numa perspectiva de punição por merecimento, de retribuição. Isto remete-nos facilmente para Kant e a sua noção da pena de morte, e para a vindicta social (Ferreira, s/data), como vimos.

 

Markel (2004) realizou um interessante trabalho baseando-se no evento de 2003, no qual o Governador de então do Estado norte-americano dos Illianois, comutou as penas a todos os condenados à morte no estado. O autor, partindo desse caso concreto, e assumindo-se como defensor da justiça retributiva, percorre várias teorias e postula outras tantas para esclarecer um aspecto muito relevante na visão da abolição da pena de morte. A maioria dos defensores da pena de morte socorrem-se de princípios da justiça retributiva para o fazer, e o que o autor faz é precisamente demonstrar como, sem fugir à justiça retributiva, é possível (e até imperativo) ser-se apologista da abolição da pena de morte.
Para o autor (Markel, 2004) a justiça retributiva é entendida em resumo como os benefícios conseguidos através do recurso de meios coercivos para comunicar a ilicitude de determinados comportamentos.
Afirma ainda que devemos considerar que há uma relação entre o porquê e o como punimos, na medida em que os meios que usamos para punir, assim como a intensidade dessa punição, deve estar de acordo com o motivo pelo qual punimos.
Assim, Markel postula uma Concepção Confrontacional de Retribuição (CCR) na qual considera que a punição se justifica na medida em que permite a manutenção de princípios de “responsabilidade moral, liberdade igual sob a Lei, e auto-defesa democrática” (pp. 7).

Recorre a outros argumentos na sua justificação da defesa da abolição da pena de morte à luz da justiça retributiva, entre eles: a possibilidade de erro, isto é, de punir inocente; questões parasitas como a raça, condição social e outros aspectos que podem ser motivo de discriminação; e por fim que a pena de morte impede que o individuo internalize os princípios morais, que seria um objectivo subjacente na justiça retributiva.



É importante ainda abordar a questão da pena de morte em relação às vítimas, o que é feito frequentemente pelos defensores dessa pena, como se, para haver justiça, tivesse de haver a morte dos ofensores como compensação das vítimas. Markel (2004), no entanto, desmente esta questão socorrendo-se da questão de na justiça retributiva as vitimas surgirem como elementos apenas transmissores do crime, ou seja, da transgressão das regras, não sendo tidas em consideração formalmente em mais nenhum aspecto do processo.
Assim, podemos considerar que, ainda que seja a justiça retributiva vista na sua forma mais crua, menos racionalizada, que justifica claramente o recurso à Pena de Morte, existem diversos argumentos mesmo na teoria em si que, pelo contrário, apelam à abolição, enquanto sinal de evolução da justiça, o que nos permite concluir que o debate actual relativamente à pena de morte, acarreta argumentos ambíguos que deverão ser objecto de análise mais aprofundada.

 

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