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A Aculturação do

povo cigano

Pode dizer-se que foi em 1957 que, com a atribuição do direito de cidadania e com a consequente obrigatoriedade de sedentarização, de matrícula nas escolas e de serviço militar (Gonçalves, 1995, cit. por Magano, 2007) que o povo cigano começou a abandonar o nomadismo, basilar na sua caracterização enquanto povo. Actualmente quase a totalidade dos ciganos são sedentários, ainda que mantenham hábitos de nómadas, frequentando habitualmente feiras por todo o País. Contudo, já são ciganos estabelecidos, geralmente em bairros sociais onde a sociedade optou por os colocar para terminar com as barracas e acampamentos nos arredores das cidades.

 

Ainda assim, os estereótipos mantêm-se: são vistos como mentirosos, pobres, criminosos e são-lhes atribuídas várias características que remetem para a infra-humanização (Magano, 2007). Este fenómeno pode ocorrer devido a associações implícitas (Cameira et al, 2002), ou seja, por associarem os indivíduos com outros que anteriormente lhes terão provocado reacções emocionais negativas, generalizando por exemplo em todo o povo cigano o acto ilícito verificado num dos seus membros; mas também por crenças culturais continuadas de recusa ao que difere de si mesmos enquanto cultura. Segundo Wilder e Simon (2001, cit. por Alexandre, 2003) a discriminação poderá ser decorrente de reacções emocionais negativas que vão ser sustentadas por cognições, levando a comportamentos e atitudes coerentes, neste caso discriminatórias. Essa discriminação é comummente acompanhada de estereótipos particulares com carácter pejorativo. É do processo de categorização que resultam, para Tajfel (1981, 1982, cit. por Alexandre, 2003) os estereótipos, que podem ser vistos como “um sistema de crenças acerca dos traços e atributos psicológicos que caracterizam um grupo” (Vala, 1999, cit. por Alexandre, 2003, pp. 38).

 

O Modelo de Identidade Endogrupal Comum resulta da perspectiva da categorização social relativamente ao comportamento intergrupal (Brewer, 1979, Brown & Turner, 1981, Tajfel & Turner, 1979, cit. por Gaertner et al, 1993) e postula uma diminuição da margem de enviesamento e conflito através de factores que influenciam a representação cognitiva dos grupos, mudando a percepção dos limites dos grupos, tornando-os menos estanques.

 

Quando um indivíduo percepciona os grupos como menos rígidos nos seus limites, vai necessariamente alterar a sua atitude a nível de preconceito e de estereótipos, isto é, ao nível cognitivo e atitudinal. O preconceito pode assim mostrar-se em vários graus de severidade: verbalizar os preconceitos; evitação; discriminação no sentido de agir para excluir; violência física e por fim a exterminação, nomeadamente em linchamentos, massacres, entre outros (Allport, 1954/1979).

 

No âmbito dos estereótipos e do preconceito, mas também das atitudes de discriminação, importa ressaltar o fenómeno da infra-humanização. Bar-Tal (1989, cit. por Lima & Vala, 2004) referiu o processo de “deslegitimação” como basilar na infra-humanização, sendo esta a imputação de características não humanas negativas a determinado grupo social. No estudo de Leyens e colegas (2000) verificou-se que há uma maior associação de emoções primárias (baseadas em aspectos fisiológicos) a membros do exogrupo; e emoções secundárias (mais evoluídas e decorrentes de processos sociais, tais como afecto e orgulho) a membros do endogrupo; tanto para emoções positivas como negativas.

 

Podemos ainda remeter-nos a conceitos precedentes à infra-humanização, como o conceito de “exclusão moral” (Opotow, 1990, Staub, 1989) que refere a percepção dos indivíduos como fora dos limites a nível dos valores morais, regras e considerações de justiça, sendo dessa forma percepcionados como inferiores, e daí aumentando a possibilidade de considerar a hipótese de se exercer violência para com eles, ainda que, para Leyens e colegas (2000), a “exclusão moral” se aplique também a formas moderadas de discriminação, não sendo necessário que ocorra em contextos de violência explícita.
A discriminação abarca ainda um fenómeno de comparação social em que, como afirma a Teoria da Identidade Social (Tajfel, 1981, 1982, cit. por Alexandre, 2003), um indivíduo, para manter uma auto-estima colectiva (Crocker et al, cit. por Verkuyten & Wolf, 2002) positiva e valorizar o seu endogrupo, vai favorecê-lo, ainda que incorra em enviesamentos endogrupais (Alexandre, 2003).
Mais raro é o processo pelo qual, ao invés da valorização do endogrupo, há um denegrir do exogrupo (Brewer, 1979, cit. por Leyens, Paladino et al, 2000), que acontece mais frequentemente em situações de ameaça ao estatuto do endogrupo (Branscombe & Wann, 1994; Crocker, Thompson, McGraw & Ingerman, 1987, cit. por Leyens, Paladino et al, 2000). Contudo considera-se que o objectivo mesmo nestes casos será não o de rebaixar o exogrupo, mas sim valorizar o endogrupo.  

 

No caso do povo cigano, acontece frequentemente que, como resultado do receio de que estes se sejam de alguma forma uma ameaça, surja a necessidade de os desvalorizar enquanto grupo. Por outro lado existe também a necessidade de justificar as desigualdades sociais, o que se traduz em estereótipos negativos que justificam a exclusão do povo cigano (Alcalde, 1997). Como reacção aos estereótipos negativos, o povo cigano desenvolve meta-estereótipos, que são as crenças que um grupo mantêm sobre a forma como são vistos pelos outros (Rodriguez-Bailon, Gomez & Puertas, 2002, cit. por Alexandre, 2003) o que vai influenciar a forma como os ciganos se vão comportar, quase como que numa necessidade de cumprir os estereótipos. Sabe-se, por exemplo, que diante da delinquência juvenil há que evitar rotular o jovem como delinquente (Braconnier & Marcelli, 2000), considerando-o antes como alguém que praticou um acto de delinquência apenas, visto que na adolescência, uma fase de definição de identidade, surge a necessidade de confirmar o rótulo, numa perspectiva de auto-profecia. Este fenómeno também acontece no povo cigano que, enquanto cultura, tem tido a sua identidade tão ameaçada.

 

Geralmente em situações biculturais é possível que a aculturação por assimilação ou integração aconteça, mas no caso do povo cigano, ressalta uma dupla dificuldade. Do ponto de vista do povo cigano, há a necessidade de manter a sua identidade, caracterizada por uma série de valores, costumes e crenças díspares da comunidade maioritária, ainda que o contacto com a cultura maioritária seja frequente; por outro lado temos a cultura dominante que está “infectada” por estereótipos que remontam, em alguns casos, aos primórdios dos tempos e que levam a que os indivíduos recusem aceitar este povo no seio da sua comunidade, preferindo ao invés de os incorporar, retirando dos seus conhecimentos e aptidões o melhor possível, simplesmente dominá-los através da obrigatoriedade do ensino, e dos apoios sociais que os ciganos aceitam e procuram, ainda que se mantenham evitantes quanto à interferência do Estado. Importa aliás salientar que, conforme Allport refere (1954/1979), nem sempre é a sociedade maioritária que promove a separação face ao grupo minoritário, e, no caso do povo cigano, tem-se verificado precisamente que, para manter a sua identidade, eles mesmos tem revelado frequentes movimentos de separação.

A questão do ensino escolar revela-se de grande importância nesta análise, visto que na realidade a obrigatoriedade deste ensino, sem preparação dos programas curriculares para as especificidades do povo cigano, apenas se reveste do sentido do “dever”, sem real aprendizagem. Para o povo cigano, a cultura escolar não está ainda instaurada realmente, e, ao confrontarem-se com um sistema de ensino que ensina História do povo Grego e Romano, e de tantos outros povos, mas nunca se refere ao povo cigano, sentem-se ainda mais excluídos, apesar de, teoricamente, a obrigatoriedade de ensino querer promover exactamente o fenómeno contrário, isto é, a integração. No entanto, não há lugar para um cigano ser cigano no sistema de ensino e o que acontece frequentemente é que as crianças, cuja escola ensina uma coisa, e que em casa aprendem outra, em que na escola os valores dominantes são quase completamente adversos aos da família; se sentem cada vez mais afastada de ambos, sem conseguir encontrar a sua “verdade”.

 

Para San Roman (cit. por Ferreira, 1999), ou há um processo de aculturação, que neste sentido se poderia equivaler ao de assimilação, ou há a completa marginalização. Isto é, numa perspectiva unidimensional do biculturalismo, se há integração na sociedade maioritária, então perde-se a identidade, a herança cultural. O que pode, contudo, acontecer é que, quando há a aculturação sem que a integração seja possível, se crie um verdadeiro vácuo de normas e valores, o que é de extrema gravidade para a manutenção do funcionamento psicossocial dos indivíduos.

 

Recorde-se a Teoria da Identidade Social (Tajfel, 1978, cit. por Cameira et al, 2002) quando nos indica que, quanto maior a identificação grupal, maior a atracção para membros do endogrupo, o que vai fortalecer o sentimento de pertença grupal, que é fulcral para um desenvolvimento positivo do indivíduo. Importa relembrar que a semelhança nas crenças é dos maiores factores de atracção interpessoal (Byrne, 1971, cit. por Gaertner et al, 1993). Neste sentido os comportamentos e resultados positivos costumam ser atribuídos ao endogrupo e vistos como decorrentes de causas internas (características de personalidade), ocorrendo o contrário no caso de comportamentos negativos, geralmente atribuídos ao exogrupo (Hewstone, Jaspars & Lalljee, 1982; Taylor & Jaggi, 1974, cit. por Gaertner et al, 1993).

No caso dos ciganos esta questão é particularmente complexa já que, para estabelecerem a sua identidade social, é necessário que tenham em consideração que se podem auto-categorizar quer como ciganos, quer como portugueses (Alexandre, 2003), e daí avaliar com qual das categorias se identificam mais fortemente. Neste sentido, pode referir-se o conceito de identidade comparativa que considera que poderão coexistir várias auto-categorizações e identificações, colocadas em níveis diferentes de relevância (Ros, Huici & Gómez, 2000, cit. por Alexandre, 2003), o que dependerá, como já indicado, do contexto, mas também de variáveis psicossociais individuais.

 

Conclusão

 O que encontramos no povo cigano é aquilo que Walgrave (2000, cit. por Magano, 2007) chamou de vulnerabilidade societal, conceito que descreve uma população sem poder para fazer valer os seus valores. Estamos numa sociedade maioritariamente burocrática, onde os direitos se defendem quando há conhecimentos intelectuais para tal, onde o lugar primordial é o da inteligência ao invés do da “esperteza” (ainda que frequentemente estas se conjuguem) e da força.

No fundo aquilo que tem ocorrido nos últimos anos (curiosamente os anos em que as alterações no povo cigano, no sentido da sua perda de identidade e valores, tem sido mais salientes) é que a sociedade promove a educação, a assistência social, a habitação, procurando de forma forçada trazer o povo cigano à “normalidade” e exige em troca uma submissão do povo cigano às regras vigentes, que tem despoletado diversos conflitos, quer entre o próprio povo cigano, quer entre este e a sociedade dominante.

No fundo pode falar-se de dois povos separados pelo medo e pela ignorância (de quem é o outro) e pela incapacidade de ceder e reconhecer no outro algo valioso que poderá ser incorporado na sociedade para a valorizar.

 

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